sábado, 30 de julho de 2011

Write or die - Afinação

Lá. Lá sustenido. Sol. Sol. Suor. Uma gota cai no chão onde já se forma uma pequena poça. O quarto sem ventilação não ajuda a secar. Dizem que o calor não é bom pra afinação. Pelo menos as paredes são grossas e ele não ouve nada além do que quer. Está há uma semana nessa cidadezinha. As chuvas impedem que toque e também impedem que vá embora. Calor, umidade. Lá sustenido. Sol.

Só pode ter sido a arrumadeira. Durante toda a semana, a cama continuava bagunçada. Para que serve o serviço de quarto, afinal? Encontrou o violino caído no chão. Uma das cordas arrebentada. Braço levemente trincado. Valor inestimável. Pelo menos ele presume que custa mais do que todo o hotel. Sem a corda reserva, a solução era usar uma mais fina e torcer. Torcer. Lá. Lá sustenido. Sol.
 
O gerente não fez nada. O hotel não se responsabiliza por objetos deixados no quarto. Resposta padrão inclusive para as espeluncas. A arrumadeira olhou nos olhos dele e não teve coragem de admitir. Ele pôde ver a falsidade e isso era algo que detestava. Com a corda mais fina era ainda mais difícil manter a afinação. Gotas e mais gotas caiam no chão. Seus pais queriam que fosse advogado, médico. Com o trabalho de músico, nunca conseguiu colocar aparelho. Seu primo era ortodontista. O orgulho da família. Tinha consultório próprio, plano de saúde e não precisava de plano dentário. Quando largou a faculdade de letras, que já não era grande coisa, e passou a viver de música, o sorriso perfeito do primo dentista foi o que mais o incomodou. Ninguém é perfeito. Também não gostava de sarcasmo.

O máximo que o seu sorriso torto conseguiu foram bodas. Começou tocando nas de papel e se tudo desse certo ainda conseguiria alguma de alguma de jequitibá. Um sonho a ser alcançado. De uns tempos para cá os malditos DJs estavam roubando o seu lugar. Ele não tinha aparelhagem de som e máquina de fumaça com cheiro de Babaloo. Pelo menos, a partir dos vinte e cinco anos de casados, os hits passavam a ser os mesmos. Já até sabia de cor My heart will go on e o tango de Perfume de Mulher. Hoje serão bodas de heliotrópio, uma das mais requisitadas. Um casal tradicional que só consegue ser tradicional mesmo nessa cidade.

Lá. Lá. Lá sustenido. Sol. O violino não para afinado. Olhos nos olhos dela e nada. Como podia não admitir? Seria tudo tão mais fácil. Ao colocar o arco sobre as cordas, um ruído estranho surgia. Como um gemido de dor. As paredes grossas abafam qualquer ruído e era justamente isso que o arco dele está produzindo nesse momento. Um ruído e não um som. Ela olhou nos seus olhos e balançou a cabeça negativamente. Tremenda audácia. Ele teve vontade de ouvir novamente a mentira, escutar a voz que quebrou o seu meio de trabalho tão perto de colocar aparelho nos dentes.

A pergunta é quase retórica. Ele já sabe a resposta, mas queria ouvir o som articulado e falso. Mais uma vez a pergunta. Silêncio. Ele afasta a mordaça que cobre a boca da arrumadeira e espera ouvir a desculpa. A boca imóvel e aberta revela dentes ainda mais tortos do que os dele. O pescoço não consegue manter a corda afinada. Um filete de sangue escorre lentamente. Gotas e mais gotas formando uma poça no chão que não seca nunca. Ele duvida que alguém algum dia vá limpar a mancha que forma no tapete. Lá. Lá sustenido. Sol.

sábado, 18 de junho de 2011

Seu Alfredo

Seu Alfredo estava completando 86 anos. Dia de festa para toda a família, netos, bisnetos, todo um clã unido por um mesmo sobrenome em seu quintal. Valia a pena comemorar cada aniversário. Nunca se sabia qual seria o último. A família se acostuma menos com a morte do que aquele que está próximo a morrer.

De manhã cedo, netos e bisnetos enchiam balões coloridos, de palhetas e formas que o próprio seu Alfredo mal podia diferenciar. Alguns estouravam fazendo as crianças rirem. Transportaram a poltrona de seu Alfredo. Faltava espaço na sala. Da sacada ele podia contemplar a felicidade da família reunida.

No fim das contas eram todos estranhos. Seu Alfredo tinha preguiça de pensar como três filhos puderam originar tanta gente. Seu Alfredo não entendia tantas fodas, já que seus filhos foram criados já com televisão em casa. Deveriam ter tido mais o que fazer, mas não tiveram. Pelo número de pessoas na casa e pelo fato de não ter ideia do primeiro nome de grande parte dos que carregavam o seu sobrenome, a programação da TV deve ser realmente uma merda.

O sol foi embora e seu Alfredo podia distinguir menos ainda quem estava ao seu redor. Colocaram uma manta sobre ele, que nem estava com frio. As bolas que estouravam, em meio a gritos e choros de criança, serviam para que não dormisse durante o espetáculo. Seu Alfredo pouco via ou ouvia, mas não era a idade. Era a própria percepção que não se importava com o seu entorno. Gostava apenas de um filho, não lembrava exatamente qual, e mesmo assim não teve oportunidade, quinze anos atrás, quando sua mulher morreu de câncer, de perguntar se era dele ou não.

Outras pessoas chegavam. Podiam ser netos, bisnetos ou mesmo os próprios filhos. Talvez tivesse tido mais de três. Não valia a pena tentar contar. A única regra era exibir a dentadura e balançar a cabeça positivamente para qualquer um que chegasse perto. Quase um cachorro que abana o rabo quando alguém o cumprimenta. Uma menina de uns quinze anos chegou e deu um beijo na testa de seu Alfredo. Usava uma jaqueta de couro e um decote. Seus peitos quase esfregaram na cara dele. Se a próstata ainda estivesse lá, o pau teria pelo menos se mexido.

O perfume que rememorou na sua cabeça não foi o marítimo cheiro de buceta, mas o couro. O animal morto o fez lembrar uma roda de amigos de 60 anos atrás. Uma madrugada, algumas carreiras de cocaína e uma roleta russa. Foi o único que teve coragem de apertar o gatilho e mantém a peça guardada até hoje por conta do orgulho de ter sobrevivido.

Com a lembrança do gosto de metal na boca, entrou na casa. Passou por meio de enfeites e familiares, todos coloridos, estúpidos e estranhos. No cubículo pertinente a alguém da sua idade, fechou a porta e numa gaveta específica, estava ela. Meio enferrujada, é verdade, mas ainda reluzente. A chupou. O gosto ainda era o mesmo. Ouviu seu nome ao longe e colocou a arma na cintura. O casaco velho de velho escondia o volume.

As pessoas estavam em volta da mesa. Um bolo com todas as velas possíveis. Colocaram uma criança no seu colo e começaram a cantar parabéns. A ninfeta envolta em couro estava do seu lado. Com as luzes semiapagadas, seu Alfredo puxou a arma e colocou no cóccix da menina. Ninguém percebeu. A mão trêmula e enrugada não impediu a precisão na hora de puxar o gatilho. Com uma música escrota no som alto e pessoas cantando sem parar, apenas seu Alfredo ouviu o clique. Garota de sorte. Talvez também tenha ouvido. Os cabelos da sua nuca ficaram arrepiados na hora, mas pode ter só pensado que era um velho tarado querendo tirar uma casquinha.

Pouco a pouco, os convidados foram embora. A poltrona estava novamente na sala e seu Alfredo, sentado, comia uma torta sem açúcar, com gosto de merda. Seu Alfredo nunca acreditou na sorte. Por um lado, pensou que ainda dava tempo de jogar no bicho essa semana. Por outro, pensou que no próximo aniversário as probabilidades de não ser só o clique eram de quatro contra um.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Não me lembro

Sol na cara. Boca seca. Cabeça latejando. A luz que entra pelo basculante do banheiro me fez acordar. Aproveito a proximidade com a privada e coloco o dedo na garganta. Não adianta, não tenho nada no estômago. Esfrego os olhos e tento saber de quem é o banheiro onde estou. Reconheço o tapete, mas não sei se é meu. Teve uma festa. Não convidei ninguém ou entrei de penetra? Me falta algo.

Caminho pela sala, vazia. Copos e garrafas espalhados por toda parte. Um vômito no sofá. Não fui eu. Não como camarão. O que será que perdi? Tateio os bolsos. Chave, bilhete usado de cinema, carteira, celular. A perda ainda me persegue.

A boca seca incomoda. Vou para a cozinha. A geladeira está aberta. Será minha? Não há nada lá dentro a não ser uma calcinha. Me lembro de um boquete. Descubro porque acordei no banheiro. Abro a torneira da pia e bebo uma água amarelada com gosto de ferrugem. A água bate e quer voltar por onde entrou. Volto para a sala. O lugar mais limpo é ao lado do vômito. Sento procurando não me sujar. Recosto a cabeça e fecho os olhos. O mundo cheirando a camarão azedo roda um pouco mais rápido. Lembro da perda. Faço uma recapitulação automática nos bolsos. Mesma ordem. Chave, bilhete de cinema, carteira, celular. Por sorte encontro um último cigarro amassado. Sorte? Não tenho fogo, não lembro se fumo ou não.

Penso no boquete. Loira, morena, negra, oriental... homem? Não tenho idéia. Lembro de uma prima minha que me dava tesão quando era adolescente. Abro a calça e penso em me masturbar. É uma boa idéia. Passo a mão pelos meus pentelhos, demoro a achar meu pau. Coloco as duas mãos por dentro da calça, me desespero. Descubro o que perdi. Puta que pariu. Terá sido a loira? A morena? A negra? A oriental? O homem?

Faço esforço para lembrar, mas a cabeça dói mais. Fico ofegante. Acho que vou vomitar. Com as calças arriadas até os tornozelos corro até o banheiro. Vomito na pia. Vejo o meu reflexo. A preocupação sobre a falta do pau vai embora. Lembrei que sou mulher.

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Texto publicado no antigo blog, mas que já apresentava uma espécie de prenúncio do que queria falar, de uma linguagem a ser explorada. Escrito em uma madrugada, em tons de catarse.

a nova locação

em estado febril procuro um lugar confortável para escrever.
organizo a casa.
organizo o tempo.
organizo a área de trabalho na esperança de conseguir algo concreto.

idealizar um espaço é a desculpa para a procrastinação. locação perfeita que nunca vai existir.  com a folha já não tão branca assim, tento ter um ponto de partida.