sexta-feira, 28 de setembro de 2012

lions club

na Argentina, com o passar dos anos, os leões perderam o seu sentido de exibição. os ingressos eram caros demasiadamente e as prioridades eram outras. falavam que era o reflexo da crise européia ou a relação da moeda com o real. no fim das contas, pouco importava. nem eles mesmos sabiam se ser leão na Argentina fazia sentido para além de estar num circo ou em um zoológico. porém, lá estavam eles no Zoo Luján e como qualquer portenho precisavam sobreviver.

a primeira vez que, para dar maior público ao zoológico, tentaram colocar um menino montado no velho Apolo, um leão realmente velho, vindo da África, mas quase sem memória de sua terra natal, Apolo não resistiu e abocanhou a criança. um menino de quase seis anos, abocanhado de uma vez só. os outros leões, não acostumados com essa situação, começaram a aplaudir. os outros bichos também aplaudiram o feito. aplaudiram até serem censurados pelo veterinário, pelo gerente e pelo segurança que sacrificou Apolo na frente de todos, para calar a imprensa e amenizar a indenização paga à família que perdeu seu filho.

a partir deste momento, os leões não souberam mais o que fazer. foi natural o ato de Apolo, qualquer um faria o mesmo no lugar dele, mas de alguma forma aquilo era passado como um ato censurável. talvez apenas na Argentina fosse errado. eram várias as especulações.

diagnosticado o problema como o instinto, logo em seguida vieram as drogas, colocadas junto com a carne para que os leões se tornassem dóceis. após um bom trabalho de assessoria de imprensa, o problema estava sanado. turistas de todo o mundo vinham ao zoológico para tirar fotos, fazer poses, às vezes até judiar de alguns leões. era cansativo, de certa forma constrangedor perante os outros bichos, mas no fim das contas, as regalias recebidas eram vistas com turvos porém ótimos olhos pelos próprios felinos.

obviamente alguns protestavam. vomitavam as medicações na frente do público, propuseram um jejum, tentaram criar um sindicato (este enfraquecido logo em seguida quando chegou-se no ponto de saber se seriam de orientação stalinista ou trotskista), mas não havia o que ser feito. era o preço a se pagar em nome de todo um país e pouco a poucos todos se convenceram.

Sidney via tudo de longe. era um dos poucos leões que mesmo entorpecido entendia Apolo. a naturalidade dos seus movimentos ao engolir a criança era lembrada de modo saudoso.

um dia, não um dia específico, mas um dia como outro qualquer, Sidney passou a acumular seus medicamentos debaixo de um velho cobertor que lhe servia como cama. um outro leão, bastante viciado, se encarregava de não deixar haver acúmulo dos remédios, embora, de tão chapado, não percebesse a dimensão da coisa.

vieram dores de cabeça, náuseas, mas após um tempo a abstinência passou. a limpidez dos pensamentos de Sidney, o assustou de início. o que vivia não podia ser chamado de fome e sim de vontade e isso, depois de tanto tempo, era estranho até para ele.

quando a brasileira, nos seus vinte e cinco anos de idade, se aproximou para tirar uma foto, de olhos fechados, de maneira que parecesse que um descansava no focinho do outro, os pêlos de Sidney se ouriçaram. aquilo era demais para qualquer um. contudo, ele nada fez. permaneceu imóvel. posou para a foto. ganhou um afago, um pedaço de carne e alguns aplausos de alguém que estava batendo o retrato.

seria a cura? deveria ele contar para os demais leões? antes de mais nada, resolveu conversar com o veterinário durante os exames semanais que consistiam tanto na coleta de sangue (determinadas substâncias podem ocasionar lesões no fígado), quanto cortar as garras (que mesmo assim geravam arranhões inevitáveis, porém encarados como troféus pelos visitantes) e afiar as presas (pois leões só são leões quando soam com leões).

a conversa foi curta e rápida. ainda satisfeito consigo mesmo, Sidney mal percebeu quando uma injeção lhe foi dada no pescoço, um pouco abaixo da juba. os outros leões até hoje não sabem para onde Sidney foi. alguns dizem que foi para um outro zoológico, um lugar melhor (talvez no fundo seja a orientação cristã falando mais alto). outros dizem que teve uma doença hepática e está internado.

fato é que após a conversa, novos cordões com presas e garras passaram a ser vendidos na loja de souvenires, o que foi percebido e comentado à boca miúda. também é fato que, na dúvida, ninguém mais resolveu se abrir com o seu veterinário, sorrindo sempre quando perguntado se estava tudo bem ou quando pediam para tirar uma foto.