sábado, 18 de junho de 2011

Seu Alfredo

Seu Alfredo estava completando 86 anos. Dia de festa para toda a família, netos, bisnetos, todo um clã unido por um mesmo sobrenome em seu quintal. Valia a pena comemorar cada aniversário. Nunca se sabia qual seria o último. A família se acostuma menos com a morte do que aquele que está próximo a morrer.

De manhã cedo, netos e bisnetos enchiam balões coloridos, de palhetas e formas que o próprio seu Alfredo mal podia diferenciar. Alguns estouravam fazendo as crianças rirem. Transportaram a poltrona de seu Alfredo. Faltava espaço na sala. Da sacada ele podia contemplar a felicidade da família reunida.

No fim das contas eram todos estranhos. Seu Alfredo tinha preguiça de pensar como três filhos puderam originar tanta gente. Seu Alfredo não entendia tantas fodas, já que seus filhos foram criados já com televisão em casa. Deveriam ter tido mais o que fazer, mas não tiveram. Pelo número de pessoas na casa e pelo fato de não ter ideia do primeiro nome de grande parte dos que carregavam o seu sobrenome, a programação da TV deve ser realmente uma merda.

O sol foi embora e seu Alfredo podia distinguir menos ainda quem estava ao seu redor. Colocaram uma manta sobre ele, que nem estava com frio. As bolas que estouravam, em meio a gritos e choros de criança, serviam para que não dormisse durante o espetáculo. Seu Alfredo pouco via ou ouvia, mas não era a idade. Era a própria percepção que não se importava com o seu entorno. Gostava apenas de um filho, não lembrava exatamente qual, e mesmo assim não teve oportunidade, quinze anos atrás, quando sua mulher morreu de câncer, de perguntar se era dele ou não.

Outras pessoas chegavam. Podiam ser netos, bisnetos ou mesmo os próprios filhos. Talvez tivesse tido mais de três. Não valia a pena tentar contar. A única regra era exibir a dentadura e balançar a cabeça positivamente para qualquer um que chegasse perto. Quase um cachorro que abana o rabo quando alguém o cumprimenta. Uma menina de uns quinze anos chegou e deu um beijo na testa de seu Alfredo. Usava uma jaqueta de couro e um decote. Seus peitos quase esfregaram na cara dele. Se a próstata ainda estivesse lá, o pau teria pelo menos se mexido.

O perfume que rememorou na sua cabeça não foi o marítimo cheiro de buceta, mas o couro. O animal morto o fez lembrar uma roda de amigos de 60 anos atrás. Uma madrugada, algumas carreiras de cocaína e uma roleta russa. Foi o único que teve coragem de apertar o gatilho e mantém a peça guardada até hoje por conta do orgulho de ter sobrevivido.

Com a lembrança do gosto de metal na boca, entrou na casa. Passou por meio de enfeites e familiares, todos coloridos, estúpidos e estranhos. No cubículo pertinente a alguém da sua idade, fechou a porta e numa gaveta específica, estava ela. Meio enferrujada, é verdade, mas ainda reluzente. A chupou. O gosto ainda era o mesmo. Ouviu seu nome ao longe e colocou a arma na cintura. O casaco velho de velho escondia o volume.

As pessoas estavam em volta da mesa. Um bolo com todas as velas possíveis. Colocaram uma criança no seu colo e começaram a cantar parabéns. A ninfeta envolta em couro estava do seu lado. Com as luzes semiapagadas, seu Alfredo puxou a arma e colocou no cóccix da menina. Ninguém percebeu. A mão trêmula e enrugada não impediu a precisão na hora de puxar o gatilho. Com uma música escrota no som alto e pessoas cantando sem parar, apenas seu Alfredo ouviu o clique. Garota de sorte. Talvez também tenha ouvido. Os cabelos da sua nuca ficaram arrepiados na hora, mas pode ter só pensado que era um velho tarado querendo tirar uma casquinha.

Pouco a pouco, os convidados foram embora. A poltrona estava novamente na sala e seu Alfredo, sentado, comia uma torta sem açúcar, com gosto de merda. Seu Alfredo nunca acreditou na sorte. Por um lado, pensou que ainda dava tempo de jogar no bicho essa semana. Por outro, pensou que no próximo aniversário as probabilidades de não ser só o clique eram de quatro contra um.