domingo, 12 de fevereiro de 2012

Entre pílulas e olhos semicerrados

Entre pílulas e olhos semicerrados, ele tenta passar o tempo. Uma tática humana, embasada em barbitúricos, para sobreviver ao seu caos. Consegue trabalhar mais, ler mais, porém com a dádiva de pensar menos. Já fazem quatro dias que ele não sai de casa. Não é nenhum recorde. Já ficou mais tempo, embora não se lembre de quantos dias exatamente. As janelas sempre fechadas com um ventilador de teto em ritmo lento, que contribui para tornar o ar viciado de más notícias. Não importa o quanto ele se isole, elas entram e o invadem. Mais barbitúricos com cerveja. Um gosto se sobrepõe ao outro. Ah, se ele tivesse um Benflogin. Poderia passar o tempo olhando o rastro dos seus movimentos, como em um filme que viu na adolescência em que um amante de Bruce Lee salva uma cidade descobrindo que ele mesmo é o mestre. Ele não tem certeza do nome. Último dragão? Viu e vê vários filmes, mas sempre em estado de torpor. Só sabe que não é o filme do Van Damme, o que já é muito produtivo em meio a tantas maneiras de se isolar do mundo através de substâncias vendidas na farmácia com uma receitinha nem tão tarja preta assim. E a culpa não é dos barbitúricos, mas sim da razão de ter que toma-los. Definitivamente o tempo teria que passar de alguma forma. Em seu apartamento minúsculo, com um cheiro de coloração ocre, o ar é escasso, sufocante, mas é o único que ele consegue respirar. Certa vez passou mal em uma praça, o ar puro estourou os vasos dilatadores do seu nariz e, apesar de achar interessante o mel vermelho que descia pelas suas narinas, não valia a pena arriscar um linchamento dos pais de família que tentavam esconder a cena dos seus filhos puros. Uma pena. Seria uma morte em ambiente tão bucólico. Morando no quinto andar, e respirando com orgulho toda a poluição de uma grande avenida, ele sabe que se pular não terá qualquer certeza. Mesmo um mergulho de cabeça, calculando a angulação e a velocidade do vento, sempre há chances de se cair em pé e ter que pegar o elevador de volta com o risco dos olhares de reprovação do porteiro e dos vizinhos. Será que ele não estudou nada de Física?, eles com certeza pensariam. Sem cigarros para um definhamento lento, gradual, mas preciso, ele opta por descansar um pouco sua cabeça dentro do forno. A temperatura é amena e apesar de toda uma comida estragada sendo lá depositada de tempos em tempos, é o cheiro mais agradável de todo o apartamento. Liga o gás, não liga o fogo, deita a cabeça, fecha os olhos e espera até que a empregada chegue no dia seguinte. Com a chave da porta da cozinha, ela entra no apartamento e acha a cena normal. No fundo, no fundo, ela pensa que ele é um performer vanguardista, embora não tenha certeza de como sobrevive economicamente com essa profissão. Deve receber mesada, mesmo no auge dos seus 35 anos. Foda-se, o salário é pago em dia e adiantado. Ela sabe que na próxima semana vai se deparar com uma nova tentativa frustrada de autoflagelação, voltada mais para ela do que para qualquer outro apreciador desse tipo de arte. Isso se há algum deles. Mesmo ela, a única espectadora de cenas geralmente deprimentes, caga para o assunto. Seu interesse gera em torno de motivos mais banais, entre contas e o tempo que leva para chegar do trabalho até casa. Ele pode fazer o que quiser, contanto que o dinheiro esteja na mesa da sala logo que ela chega. E se for até o fim, favor indicar como proceder e deixar um plus para o estresse que representará chamar o rabecão até que a família chegue. Essa é a arte de vanguarda, copiada por artistas não tão criativos, mas que se acham no direito de uma crise de criatividade à altura dos grandes. Ele sai do forno para que ela possa fazer o almoço. O único trato é que o cheiro ocre permaneça. Tanto faz. Faz tempo que ela não respira nada interessante, pois em sua juventude a cocaína reduziu o nariz apenas à função de levar oxigênio aos pulmões. Nada mais. Nenhuma opção poética. Lírios, rosas ou merda, dá tudo na mesma. Sua empregada, chamada assim, pois ela recusa o rótulo de secretária (para não abrir nenhum precedente e ter que dormir com o patrão), faz com que os 30 metros quadrados do seu apartamento se tornem dignos das relações de casais em crise. Se ela está na cozinha, que não tem divisória com a sala, ele se limita a permanecer no banheiro. Sem preocupação com o asseio pessoal, somente se masturbando ou dormindo próximo ao tapete do banheiro. Quando ele retorna ao quarto/cozinha, repara que a geladeira continua inabitável. Fétida, talvez o ambiente mais podre de toda a sua vida, onde nem ele tem coragem de entrar para resolver a podridão e ela sabe que não é paga o suficiente para essa tarefa. São cinco da tarde e os dois estão conscientes que o apartamento continua uma merda. Está tudo na mesma, mesmo que alguma poeira tenha sido jogada para debaixo de algum móvel pesado. Apenas a geladeira é intocável, irresolvível em sua putrefação, que cresce dia a dia. Com a diária já paga desde a manhã, ela dá um adeus que nunca torna claro se voltará na próxima semana. Exceto por alguns barbitúricos que somem, mas que ele acha justo, o espaço continua habitável. Talvez apenas por ele, mas habitável. Seis horas da tarde. Uma quarta-feira. Tinha até um trabalho para fazer, com o deadline estourado há vários dias. Mas que não será feito até o final da semana. Ainda há cerveja e comprimidos. O segredo é tornar o cliente refém do seu trabalho. Ele sequestra as mídias, o projeto, e o cliente que não tem nada só pode, puto da vida, esperar. Ligando o foda-se  para o trabalho, para o cliente, para a sua sujeira, ele repara o quanto é amarelo. Uma soma do cu repleto de barbitúricos e de altas doses de álcool. Ainda é quarta-feira, a secretária só volta daqui a uma semana (chama-la assim revela a esperança de alguma foda num futuro próximo em que ele não esteja tão amarelo). Até lá nem vale a pena colocar a cabeça no forno. Que merda. Não há nada pra fazer.

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